segunda-feira, outubro 13

Com 12% do que se gasta com armas, o mundo acabaria com a fome, diz Lula na FAO

Em discurso proferido na cerimônia de 80 anos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), criada antes da própria ONU, presidente insiste que acabar com a fome depende de decisão política. No dia em que o acordo Israel-Hamas entra em ação, Lula lembra que a paz está ligada ao combate a desigualdades sociais

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursou em evento que celebra os 80 anos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), nesta segunda-feira (13/10), em Roma, sede da organização.

Lula voltou a insistir que a comunidade internacional de países precisa inverter as prioridades e investir no combate à fome, raiz e símbolo maior das desigualdades sociais.

Em um dos trechos de seu discurso, Lula destacou que, com 12% do que se gasta anualmente com armas, o mundo acabaria com a fome da humanidade. O presidente recordou que a tecnologia agrícola permite a produção de alimentos em quantidade suficiente para todas as pessoas, mas que o acesso à comida, em virtude da falta de distribuição justa dos recursos financeiros, é interditado a milhões de humanos.

Lula propôs que a taxação de 2% sobre os super-ricos pode suprir essa lacuna.

Leia o discurso na íntegra:

“Meus amigos chefes de Estado, chefes de Governo, delegados aqui presentes e ministros que me acompanham nessa viagem.

Celebramos neste Fórum os oitenta anos da FAO.

Há dez anos, tive o privilégio de participar da comemoração dos setenta anos desta Organização.

Muito mudou nesse período.

Vivíamos, então, o entusiasmo da adoção da Agenda 2030.

O mundo havia se unido em torno de objetivos comuns e caminhava rumo a um futuro promissor.

Hoje, tanto nossa capacidade de agir coletivamente quanto o otimismo que nos animava estão abalados.

Os desafios se aprofundaram. Mas não temos alternativa senão persistir.

Enquanto houver fome, a FAO permanecerá indispensável.

É simbólico que sua fundação tenha precedido à da própria ONU.

Uma semana antes de os líderes mundiais se reunirem em São Francisco em outubro de 1945, representantes de mais de 40 países se encontraram no Canadá para criar esta Organização.

Quando o mundo emergia de seu momento mais sombrio, a comunidade internacional reconheceu que em seu futuro não havia lugar para a fome.

O brasileiro Josué de Castro, que presidiu o Conselho Executivo da FAO nos anos cinquenta, dizia que “metade da humanidade não come; e a outra metade não dorme, com medo da que não come”.

O acesso a alimentos continua sendo um recurso de poder.

Não há como dissociar a fome das desigualdades que dividem ricos e pobres, homens e mulheres, nações desenvolvidas e nações em desenvolvimento.

Nos anos setenta, alguns acreditavam que a produção agrícola não acompanharia o crescimento populacional.

O progresso tecnológico desbancou essa previsão.

Hoje, o mundo produz comida suficiente para alimentar uma vez e meia a população mundial. 

Ainda assim, 673 milhões de pessoas, segundo a FAO, estão em situação de insegurança alimentar.

Com base em dados do Programa Mundial de Alimentos, é possível estimar que garantir três refeições diárias a essas pessoas custaria cerca de 315 bilhões de dólares. Isso representa 12% dos 2,7 trilhões de dólares consumidos anualmente com gastos em armas.

Estabelecendo um imposto global de 2% sobre os ativos de super-ricos, obteríamos esse montante.

A fome é irmã da guerra, seja ela travada com armas e bombas ou com tarifas e subsídios.  

Conflitos armados, além do sofrimento humano e da destruição da infraestrutura, desorganizam cadeias de insumos e alimentos.

Barreiras e políticas protecionistas de países ricos desestruturam a produção agrícola no mundo em desenvolvimento.

Da tragédia em Gaza à paralisia da Organização Mundial do Comércio, a fome tornou-se sintoma do abandono das regras e instituições multilaterais.

Roma é sede de três agências que salvam vidas.

O trabalho da FAO, do Programa Mundial de Alimentos e do Fundo Internacional para o Desenvolvimento da Agricultura não deixa dúvidas de que o mundo seria um lugar pior sem o multilateralismo. 

Graças à FAO,

» um número crescente de países reconheceu o direito à alimentação em sua legislação;

» a peste bovina e a doença da cegueira dos rios foram erradicadas; e

» a comida que consumimos segue parâmetros definidos em um código universal, que garante sua segurança e qualidade.

A FAO é exemplo de um multilateralismo que escuta os países em desenvolvimento, valoriza o conhecimento local e constrói soluções adaptadas a cada realidade.

O Brasil tem orgulho de fazer parte da história desta Organização.

Lula e Janja são recebidos por brasileiros em Roma

 Seu apoio foi fundamental para fortalecer políticas brasileiras que se transformaram em referência global.

Durante seus dois mandatos como diretor-geral, o professor José Graziano da Silva, aqui presente, contribuiu para essa fertilização cruzada.

Acolhido pela FAO, nosso Programa Fome Zero serviu de inspiração para o segundo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável.

Aliando programas de transferência de renda, alimentação escolar e fortalecimento da agricultura familiar, conseguimos tirar o Brasil do Mapa da Fome em 2014. 

O retrocesso que vivenciamos nos anos seguintes demonstrou que o combate à fome deveria ser uma luta perene. Não se trata de assistencialismo. É preciso colocar os pobres no orçamento e transformar esse objetivo em política de Estado, para evitar que avanços fiquem à mercê de crises ou marés políticas.

Mesmo líderes de países com orçamentos pequenos podem e precisam fazer essa escolha.  

Desde 2023, temos trabalhado incansavelmente para reconstruir políticas sociais.

As sementes que plantamos frutificaram.

Neste ano, a FAO anunciou que outra vez o Brasil saiu do Mapa da Fome.

Em 2024, alcançamos a menor proporção de domicílios em situação de insegurança alimentar grave da nossa história.   

Registramos, ainda, a menor proporção de domicílios com crianças menores de 5 anos em situação de insegurança alimentar grave desde 2004.

Estamos interrompendo o ciclo de exclusão.

Um país soberano é um país capaz de alimentar seu povo. A fome é inimiga da democracia e do pleno exercício da cidadania. É possível superá-la a por meio da ação governamental.

Mas governos só podem agir se dispuserem de meios.

Por isso, ampliar o financiamento ao desenvolvimento, reduzir os custos de empréstimos, aperfeiçoar sistemas tributários e aliviar a dívida dos países mais pobres são medidas cruciais.

Não basta produzir. É preciso distribuir.    

Poucas iniciativas contribuiriam tanto para a segurança alimentar e nutricional quanto uma reforma da arquitetura financeira internacional que direcionasse recursos para quem mais precisa.

A América Latina e o Caribe vivem o paradoxo de ser o celeiro do mundo e conviver com a fome.

A África atravessa crescimento econômico ao mesmo tempo em que registra aumento preocupante nos níveis de insegurança alimentar.

Sob a liderança do diretor-geral Qu Dongyu, o Brasil tornou-se parceiro da FAO em mais de quarenta países, fortalecendo a cooperação Sul-Sul trilateral.

Seis instituições brasileiras, entre as quais a Embrapa, foram agraciadas este ano com o prêmio da FAO de reconhecimento técnico a boas práticas, que o Brasil se dispõe a compartilhar sem condicionalidades.

O combate à fome e à pobreza é um dos principais pilares da política externa brasileira.

Em maio, promovemos o Segundo Diálogo Brasil-África sobre Segurança Alimentar, Combate à Fome e Desenvolvimento Social.

Há poucas semanas, realizamos, na cidade de Fortaleza, a Segunda Cúpula Global da Coalizão para a Alimentação Escolar.

No ano que vem, sediaremos a trigésima nona Conferência Regional da FAO para a América Latina e o Caribe.

Foi desse espírito de solidariedade que nasceu a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza.

Lançada pela presidência brasileira do G20, ela já conta com 200 membros, dos quais 103 países.

Hoje, inauguramos o Mecanismo de Apoio que impulsionará a implementação de projetos-piloto em diversas regiões.

Convidamos todos, mas todos mesmo, a contribuírem com a iniciativa.

Senhoras e senhores,

Um planeta mais quente será um planeta com mais fome.

A escassez de água, a perda da biodiversidade e as catástrofes naturais afetarão a produtividade agrícola e os preços de alimentos.

As inovações técnicas e científicas que transformaram a agricultura no século vinte ficaram conhecidas como a “revolução verde”.

A mudança do clima exigirá de nós uma revolução mais verde e mais inclusiva.

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Lula e sua delegação reúnem-se para encontro na FAO

Mitigar as emissões do setor agrícola e adaptar sistemas alimentares a uma nova realidade climática são tarefas que demandam tecnologias e muitos recursos.   

Para que essa transição seja justa, é preciso redobrar a cooperação.

Não haverá justiça climática se o enfrentamento ao aquecimento global não caminhar lado-a-lado com o combate à fome e à pobreza. Entrelaçar essas duas lutas será a missão da COP30, em Belém.

As Contribuições Nacionalmente Determinadas podem se tornar veículos para a promoção da segurança alimentar e nutricional.

Isso é possível:

» fomentando a agropecuária de baixo impacto ambiental

» apoiando a agricultura familiar

» produzindo bioenergia como alternativa renovável

» e compensando quem preserva a natureza 

Vamos lançar, em Belém, o Fundo Florestas Tropicais para Sempre, um mecanismo inovador que vai remunerar tanto quem investe quanto quem mantém a floresta em pé.

A FAO será uma parceira incontornável na construção de um futuro sustentável.

No Brasil, a escritora brasileira Carolina de Jesus, mulher negra que registrou as aflições cotidianas dos moradores de uma favela em São Paulo, disse que a escravatura do mundo atual se chama fome.

Nossa maior missão é concretizar a promessa inscrita na Constituição da FAO e livrar, enfim, a humanidade desse mal.

Só vamos combater a fome, a pobreza e as desigualdades de forma eficaz quando os pobres deixarem de ser invisíveis para a elite política.

Crédito: Agência Gov

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