
O mercado global de carbono movimentou um recorde de US$ 949 bilhões em 2023. Enquanto grandes corporações e países negociam créditos que valem fortunas, os 3,9 milhões de estabelecimentos da agricultura familiar brasileira, responsáveis por 70% dos alimentos que chegam à nossa mesa, permaneceram historicamente de fora dessa equação.
Não por falta de capacidade de sequestrar carbono, mas por uma barreira aparentemente intransponível: os custos administrativos elevados para acessar esse mercado, que praticamente inviabilizam a participação de pequenos produtores.
Em Mato Grosso do Sul, no entanto, essa história está mudando através da combinação entre inovação tecnológica e articulação institucional.
O Programa Agroflorestar MS – Carbono Neutro não é apenas mais um projeto ambiental. É a prova de que a tecnologia pode democratizar o que antes parecia reservado aos grandes. Coordenado pela Associação dos Produtores Orgânicos de Mato Grosso do Sul (APOMS) — fundada em 2003 por 14 cafeicultores orgânicos do município de Glória de Dourados e que hoje atua em todo o estado —, com suporte técnico-científico da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e apoio da Secretaria de Meio Ambiente, Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação (SEMADESC), o programa pretende integrar cerca de 800 produtores em uma área de 2.000 hectares nos próximos anos.
O diferencial? Uma plataforma digital que simplificou significativamente o processo de certificação de créditos de carbono — antes complexo, caro e dependente de auditorias internacionais presenciais.
A plataforma ACORN (Agroforestry CRUs for the Organic Restoration of Nature), desenvolvida e financiada pelo Rabobank — um banco cooperativo holandês especializado em agronegócio sustentável — em parceria com a Plan Vivo, utiliza sensoriamento remoto para medir o crescimento da biomassa vegetal nas áreas de agrofloresta.
O que antes exigia auditorias caras em campo agora é feito por satélites. A plataforma gera e gerencia todos os processos — depósito, validação, certificação e comercialização dos créditos de carbono — de forma automatizada e acessível. Pela primeira vez, o pequeno agricultor que planta árvores junto com suas culturas pode ver esse trabalho convertido em renda adicional, sem precisar de um exército de consultores ou investimentos proibitivos.
Essa transformação tecnológica não surge no vácuo. Ela responde a uma urgência que os agricultores familiares sentem na pele: as mudanças climáticas. Grandes enchentes que antes eram raras agora se repetem com frequência alarmante. Secas prolongadas castigam regiões inteiras. Ondas de calor e frio intensas desafiam os ciclos tradicionais de plantio. O clima do planeta mudou, e quem vive da terra é o primeiro a sentir o impacto — e o último a ser incluído nas soluções.
A ciência por trás dessa urgência é robusta. O aumento das concentrações de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera — principalmente gás carbônico (CO₂), metano (CH₄) e óxido nitroso (N₂O) — elevou a temperatura do planeta em 1,5 graus Celsius em relação aos níveis pré-industriais. Esses gases funcionam como um cobertor invisível que retém o calor das ondas solares. Sem o efeito estufa natural, a vida seria impossível. O problema é o excesso produzido por atividades humanas: queima de combustíveis fósseis, desmatamento, modelos de produção agrícola de alta emissão, indústria. É sobre essas emissões que recaem as negociações globais.
A comunidade internacional vem se mobilizando há décadas. A trajetória começou na Conferência de Estocolmo em 1972, ganhou força na Rio-92 e consolidou-se com o Protocolo de Quioto em 1997, que instituiu os mecanismos de mercado de carbono, especialmente o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). A ratificação em 2005 consolidou essas ações. O Acordo de Paris, firmado na COP21 em 2015, trouxe compromissos nacionais de redução de emissões. Agora, em novembro de 2025, a COP30 será realizada em Belém, trazendo o debate climático para o coração da Amazônia brasileira.
O Brasil assumiu compromissos ambiciosos. Sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) estabelece a meta de reduzir entre 59% e 67% das emissões de GEE até 2035, tendo 2005 como base. Para alcançar esse objetivo, cada setor produtivo precisa avaliar seus sistemas, identificar pontos de redução ou remoção de carbono. É nesse contexto que surgem os créditos de carbono: certificados negociáveis que representam a redução ou remoção de uma tonelada de dióxido de carbono equivalente (CO₂eq) da atmosfera, seja através de tecnologias mais limpas, restauração de florestas ou outras intervenções no manejo produtivo.
Em 2024, o Brasil instituiu o marco regulatório desse mercado através da Lei nº 15.042, que criou o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). Existem duas vias principais: o mercado regulado, ligado à UNFCCC, e o mercado voluntário, conectado a diversas instituições e empresas. Ambos exigem documentação complexa e preenchimento de formulários específicos em diferentes fases.
Aqui estava o grande obstáculo: os custos administrativos eram tão altos que inviabilizavam a entrada de agricultores familiares, sozinhos ou em pequenos grupos.
A UNFCCC, reconhecendo essa barreira, promove os projetos REDD e REDD+ (redução de emissões por desmatamento e degradação florestal), que oferecem incentivos financeiros a países em desenvolvimento. Geralmente envolvem grandes áreas, milhares de hectares. A estratégia, portanto, é integrar agricultores familiares em projetos de maior escala, onde as atividades agrícolas são desenvolvidas em consonância com a conservação de florestas naturais ou restauradas, como nos sistemas agroflorestais.
Agroflorestar MS
É exatamente essa estratégia que o Programa Agroflorestar MS está colocando em prática. Ao promover práticas agroecológicas que melhoram a saúde do solo e das plantas, o programa viabiliza o ingresso de agricultores familiares no mercado voluntário de créditos de carbono. Os sistemas agroflorestais são dimensionados de acordo com os objetivos de cada família, considerando geração de renda, restauração e conservação de florestas. Mesmo em áreas pequenas, de apenas um hectare, é possível o monitoramento via sensoriamento remoto.
O programa também reforça os estoques de espécies frutíferas e madeiras nativas dos biomas locais, além de incentivar a sucessão familiar em comunidades tradicionais, incluindo indígenas, quilombolas e assentamentos. A tecnologia não apenas reduz custos, mas também traz transparência e credibilidade ao processo. O que antes era inacessível tornou-se possível. O que parecia reservado aos grandes tornou-se democrático.
Essa experiência local tem relevância global. Ela demonstra que a inclusão da agricultura familiar no mercado de carbono não é apenas uma questão de justiça social, mas de eficácia climática. São milhões de pequenas propriedades que, somadas, representam um potencial gigantesco de sequestro de carbono. Ignorá-las é desperdiçar uma das ferramentas mais poderosas que temos para enfrentar a crise climática. Incluí-las é multiplicar o impacto de cada real investido em sustentabilidade.
Espaço especial na COP 30
Em novembro de 2025, quando Belém sediar a COP 30, Mato Grosso do Sul terá seu próprio espaço de destaque no evento — o MS Day —, apresentando iniciativas como o Agroflorestar MS. Enquanto delegados de quase 200 países discutem metas ambiciosas e acordos complexos, talvez a solução mais transformadora não esteja apenas nos grandes projetos bilionários ou nas tecnologias sofisticadas de captura de carbono. Talvez esteja também na capacidade de conectar o global ao local, de transformar cada pequena propriedade rural em uma aliada da estabilidade climática, de fazer com que o cuidado com a terra se traduza em dignidade econômica para quem a cultiva.
O mercado de carbono, quando bem estruturado e democratizado pela tecnologia, deixa de ser um conceito abstrato para se tornar uma ferramenta concreta de transformação. O Programa Agroflorestar MS está demonstrando que é possível fazer a agrofloresta valer dinheiro para quem a cultiva. E essa pode ser apenas a primeira onda de uma mudança muito maior. Afinal, se a meta de 800 agricultores for alcançada, por que não expandir para 8 mil? Por que não 80 mil? Por que não todos os 3,9 milhões de agricultores familiares do Brasil?
A resposta a essa pergunta pode definir não apenas o futuro da agricultura familiar brasileira, mas também a credibilidade do país nas negociações climáticas globais. Porque, no fim das contas, a verdadeira revolução climática não será feita apenas por governos e corporações. Será feita por milhões de mãos que plantam, colhem e, agora, também sequestram carbono — uma árvore, uma safra, um crédito de cada vez.
Crédito: Agência Gov
Leia Mais em: O Maringá